quinta-feira, março 24, 2005

Um pouco de... Fernando Pessoa

Com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo...
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O pagão desconhecia, no mundo real, este sentido doente das coisas e de si mesmo. Como era homem, desejava também o impossível; mas não o queria.
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Conheço-me inteiramente, e, através de conhecer-me inteiramente, conheço inteiramente a humanidade toda. Não há baixo impulso, como não há nobre intuito que me não tenha sido relâmpago na alma; e eu sei com que gestos cada um se mostra. Sob as máscaras que as más ideias usam, de boas ou indiferentes, mesmo dentro de nós eu pelos gestos as conheço por quem são. Sei o que em nós se esforça por nos iludir. E assim à maioria das pessoas que vejo conheço melhor do que eles a si próprios. Aplico-me muitas vezes a sondá-los, porque assim os torno meus. Conquisto o psiquismo que explico, porque para mim sonhar é possuir, e assim se vê como é natural que eu, sonhador que sou, seja o analítico que me reconheço.
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(...) os meus sonhos erguem-se independentes da minha vontade e muitas vezes me chocam e me ferem. Muitas vezes o que descubro em mim me desola, me envergonha (talvez, por um resto de humano em mim - o que é vergonha?) e me assusta.
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(...) nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. (...)
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O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas ilusões - a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.
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A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes... brilhos do espírito, correntes do entendimento, vozes (...) e filosofias que têm o mesmo entendimento que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas secreções.
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Há em olhos humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciência, o grito clandestino de haver alma.
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O Livro do Desassossego
Bernardo Soares